Cuia

Botava na cuia todos aquilos que ouvia fundo nos dias que fazia chuva e/ou frio. É como se em sua imaginação pouco imaginativa e ainda pouco prática ele dispusesse lugares para caber-se quando assim ou assado. No canto alto do campo comprido verde-claro e sob azulíssimo céu, guardava-as em pequenos tijolinhos, as expectativas. Ali tudo era transformável. Era plausível reverter. Era doce flutuar.

Noutra fazenda, quase extinguiu a saturação. Num dia, catou palitos de churrasco e saiu e caçou neblinas feito algodão doce. Enrolou mais de centena daquele vê-não-vê através do ar. Era tudo carregado. Chover achava confortável. Se precisava estar triste, deitava-se ao banco duro da calçada pra distrair suas obrigações de dar satisfação mesmo quando não estava satisfeito. Suspeitava que o cinza não combinava pra ser sua cor preferida, e esfregava as folhinhas do jardim até voltá-las mais verdes.

Quem o ouvia permanecia em demorada dúvida se tudo absurdo ou se dava pra achar alguma poesia. A maioria dormia. Nem ele mesmo se acreditava toda hora.

Lente

Dessabido de onde guardar-nos os restos de tanta sutileza, sugeriram-lhe brilhar-nos os olhos. Descer-nos uma cortina de água a refrescar as percepções. Pra retocar o incômodo, acarinhar o pacato, até que tudo o que a gente pudesse enxergar fosse minimamente extraordinário. Na ideia dele, todas as criaturas viveriam em perpétuo encanto, apaixonado pelo infinito impossível do céu e o algodão mentiroso das nuvens. Por talvez desobediência, inconveniência ou acidente, ousamos por desfazer. O mundo maravilhoso passou a dividir-se com outros que quisemos menos magníficos. Desentendemos o brilho de águas e as ensinamos a jorrar. Sorte nossa que elas deram o troco - e decidiram que quando houvesse felicidade também deveriam comemorar.

Mas esquecidos disso, quando por dentro tudo é tanto, acaba que a gente se perde. Em labirinto pouco confortável, parece fundo demais. Que seja. Só que existe fundo em poço, fundo em lago, no mar e nos olhos. No fundo, fuundo, é a gente que prefere o que perceber. E assim, por um lado ou por outro, temos o dom de escolher o que dá pra chorar. Provavelmente por dúvida se existe e por medo se ri - o mundo bem que podia querer que sorriso e verdade pudessem bastar.

Memória

Quando se desprende de ser só bela, refaz os espaços abertos e apertos, desdobra sem-ser-por-mal todos os abraços que não chegaram a abraçar. Volta e revira tudo. Em rastro aromático e onisciente, inspira. Sede de multiplicar-se, de se fazer outras e próximas e muitas. Talvez o maior dos lastros, que se alastra e me lustra e me guarda. Faz permanecerem fartos os meus restos, e retos os meus fardos. Faz me permitirem as linhas e as tantas, as minhas e as santas, às sombras e às claras. Faz tudo mais céu.

Pra que naquela previsão preguiçosa de ofício, naquela apreensão odiosa dos meus riscos, o futuro possa me poupar as aparas. Nas páginas pré-inscritas, quero haver poucas censuras. Nas pós-vividas, precisar de raras rasuras. Poder distribuir sem critérios as histórias de doces ou de doses, de dores ou dotes, sem me exigir dosar ou adoçar ou adorar ou adotar em falso nenhuma delas.

E aos recontos, que tenham a única piedade de não me cobrarem ser criativo. Quando der, fantasia. Mas quando não, poesia. História sempre me pareceu a falha mais autêntica de se tentar voltar no tempo.

Por fim, que os feitos ou os jeitos dos meus pés saciem o interesse das minhas lembranças. E terei sido só gratidão a esse dom/castigo de me poder lembrar.

Conta-se que naquela cidade vivia um garoto que sonhava demais. Voltava da escola, corria para o quarto e passava o resto do dia desenhando e escrevendo sobre as coisas que ele imaginava. Uma vez, enquanto desenhava um rio em seu caderno, precisou do lápis azul e não o encontrou dentro da gaveta. Buscou nos armários e estojos. Sob as camas e escrivaninhas e sofás e geladeiras. Parou no meio do quarto, tentando se lembrar de onde havia deixado. Olhou pro rio e pensou como seria fácil se ele soubesse cada pedaço do seu caminho. Um rio nunca perderia um lápis azul. Estaria escondido em algum canto de seu percurso, e ele logo o encontraria. Desistiu de achar o lápis e foi correndo até o quarto da mãe, pedir-lhe um novelo de lã azul. voltou ao seu cantinho, pegou um pedaço de arame, uma corda, alguns pedaços de fita adesiva e estava pronto.

No dia seguinte, saiu de casa confiante para ir à escola. Amarrara a ponta da lã na maçaneta da porta do seu quarto, e desde ali, enquanto andava, o novelo se desfazia e ia desenhando o caminho do menino, onde quer que ele fosse. As pessoas se incomodavam, e ele não se preocupava. Até que começou a ficar chateado por ser o único a ter tido essa ideia que ele achava genial.

Até que, na volta pra casa, notou alguém andando perto da praça. Ela caminhava meio perdida, e segurava nas mãos um novelo vermelho, que se desenrolava enquanto ela ia. Ele a seguiu, começaram a conversar, e por algum tempo, o desenrolado das lãs caminhava junto. Paravam juntos, evitavam juntos. Ela vinha de longe, e tinha escolhido um novelo especial pra registrar sua viagem. Tinha medo de se perder longe de casa e não saber o caminho de volta.

E algum pouco tempo depois disso, a lã da sua viagem resolveu encolher. Foi acabando aos poucos, aos poucos, até que acabou. Ela precisava voltar pra casa. Deixou a pontinha do novelo num caderninho com ele, e seguiu de volta sua trilha de lã. 

Ela que voltou, mas foi ele quem mais sumiu. Às vezes se esquecia de que, pra qualquer coisa, tinha seu caminho inteiro logo ali. Pensava se um rio se lembrava de todas as curvas que já tinham vivido. De todas as vezes que deve ter passado perto de um rio que acabou nem notando. E, por fim, ele percebeu que tem hora que os caminhos não fazem tanto sentido, mas que se uma vez se encontram, de alguma forma continuam ligados, mesmo depois de a lã acabar.

Paralelo

Ela vivia alguns passos no futuro dele. Sentia que ela já sabia o ponto certo para se lhe estar. O lugar par dos seus pensamentos escolhidos, dos gostos escapados e dos comentários dizidos. Parecia que nela as aspas eram o melhor jeito de guardar suas pedras preciosas. Tudo o que ela cantava vinha minimamente perfeitamente doce. E tudo tinha um pedaço de autobiográfico dele. Um caco de espelho, um rabisco impossivelmente gêmeo. Paralelo. Era companhia para ele e também parecia para ela. De longe, dançavam doidos da distância muita. E aí conversar prendia. Desconversar rendia. E o dia dos dois os costurava numa renda devagar. Rodava a renda-ciranda e girando acabava criando um apetite adolescente de a querer pra sempre. Pequeno ou grande, não importava, não tinham pressa. ele tinha certeza de que o sempre sem pressa haveria de durar muito mais. Não ousavam passar a caneta aquele desenho tão lindo que desenhavam a lápis. Ainda não. O que era preciso pra que eles dormissem bem já muito brilhava nos olhos cúmplices dos dois. Se deixavam crer que flutuavam à escolha dos ventos e dos frios, e que as estrelas cuidavam de trançar os caminhos. Vez ou outra, os dois se escondiam no escuro entre uma constelação e outra. as estrelas desconfiavam, mas deixavam. Às vezes eram só trilha perdida no céu, às vezes eram abajures-voadores pras páginas dos dois aqui embaixo. Eles não sabiam que as estrelas eram românticas também.